NIJINSKI, O SALTO E O PENSAMENTO.

Raul Antelo[1]
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heterotopia I
heterotopia I - reginaldo cardoso

O filme de Herbert Ross, Nijinski (1980), é absoluta, decididamente, realista e seria bom lembrar que o realismo não é o parti pris do real mas o do possível. Nijinski, no entanto, praticava o impossível. Mas como chegamos a um filme realista sobre este desesperado artista? 

Em 1970, o produtor canadense Harry Saltzman pensa em filmar a biografia do dançarino, porém, sob a direção de Ken Russell, que esse mesmo ano lançara The Music Lovers, sobre a vida de Tchaikovsky. Teria sido muito oportuno. Muda, entretanto, para Tony Richardson, quem adaptara Tom Jones e Joseph Andrews, narrativas de homines sacri ingleses do sec. XVIII. O roteiro desta versão primeira e frustrada foi escrito por Edward Albee. Como vemos, alta coerência negativa em torno de Nijinski, em um filme que seria interpretado por Rudolf Nuréyev, como Vaslav, mas que, como lamentamos, ficou inacabado. Saltzman pensa então em Herbert Ross, autor de vários filmes de 007, e que tivera muito sucesso, pouco antes, com The turning point (1977), um filme bastante piegas, sobre o universo do balé, estrelado por  Shirley MacLaine e Anne Bancroft, com Mikhail Baryshnikov no elenco. Esta segunda versão, Nijinsky (1980), dirigida por Herbert Ross, foi protagonizada por George de la Peña, dançarino do American Ballet Theatre, interpretando Vaslav; Leslie Browne (que atuara em The turning point) era Rômola; Alan Bates, Diáguilev e o estreante Jeremy Irons, como Fokine. A autêntica Rômola Nizhinski até aparece como roteirista do filme de Ross, o que já nos permite pensar em uma versão "editada", ad usum delphini, da biografia do artista.

Nijinski não é um desconhecido para nossa cultura. Nem ela para ele: o dançarino produziu efeitos certeiros na arte local. Ele dançou, no Rio de Janeiro e em Buenos Aires, em duas oportunidades,1913 e 1917. No retrato relâmpago que dedica a Nijinski, Murilo Mendes descreve a segunda visita: “Tenho 16 anos, logo rejeito a dimensão comum do mundo. Precipita-se o carro do meu destino. Alço-me à faixa do relâmpago. Não existe o problema de Deus. Existe Deus revelado pelo ‘êxtase material’”. E esse êxtase material é o salto de Nijinski, que dá a Murilo impressão de ele ficar suspenso no ar. O que fica suspenso é o pensamento. Retomaremos a ideia mais adiante mas digamos, por enquanto, que, quando interno no sanatório Bellevue, muitos anos depois, Nijinski receberia a visita de Serge Lifar, seu sucessor nos Balés Russos de Diaghilev, convidado por Rômola para visitar o antigo ídolo, e aí, estimulado pelo jovem dançarino, ele dá um único e derradeiro salto, imortalizado em uma fotografia. Em O filho pródigo, Murilo Mendes diz: "Nijinski dançando no arco-íris / Reconcilia o céu e a terra". O impossível.

Mas não é só Murilo a se sentir atraído por Nijinski. Flávio de Carvalho desenvolve uma teoria do moderno que passa, justamente, pelo movimento e a metamorfose. Argumenta:

A dança nasceu na floresta e os primeiros movimentos do antepassado são movimentos de dança. É o mesmo movimento circular da fera enjaulada de hoje, este também se originou na floresta onde as árvores funcionavam como o protótipo das barras da jaula futura. O antepassado que descia da árvore não avançava imediatamente em marcha reta [,] mas espreitaria circularmente, herdando os ensinamentos do galho da árvore e, por estes, estabelecendo o Medo que enfrentava frente ao mundo novo da terra firme tão diferente do movimento oscilatório do galho. O Medo torna-se uma função dos movimentos circulares estereotipados pela vida desenvolvida sobre o galho da árvore (CARVALHO, 1957).

Em 1917, Nijinsky, como dizíamos, percorre a América do Sul pela segunda vez. Em visita a Buenos Aires, surge a ideia de Caaporá, balé a ser dançado por Nijinski, construído a partir de lenda tupi, com roteiro de Ricardo Güiraldes e música de Stravinsky. Houve para tanto várias reuniões, no Prata e na Suíça, mas o balé nunca se terminou. É nessa época que aparecem os primeiros sintomas no dançarino. Durante um ensaio no Teatro Colón, o répétiteur Grigóriev pede a Nijinski que dance, mais uma vez, O espectro da rosa, um dos seus maiores sucessos, estreado, aliás, por ele mesmo. Nijinsky, porém, atordoado, pergunta de que espectro ele está mesmo falando. O pianista Arthur Rubinstein, que o acompanhou na apresentação no Teatro Solís de Montevidéu, narra, em suas memórias, o pânico cênico de que ele é tomado na ocasião e que só lhe permite dançar por breves instantes. Nijinsky é finalmente diagnosticado esquizofrênico em 1919 e Rômola decide ir à Suíça, para entrevistar o psiquiatra Eugene Bleuler, inventor aliás do conceito de esquizofrenia. É internado em Bellevue, no lago de Constança, feudo dos Binswanger, onde também residiram o teórico da vida póstuma, Aby Warburg, o pintor Kirchner e onde teria sido internado Raymond Roussel, caso não tivesse antes se suicidado em Palermo, a caminho de Kreuzlingen, precisamente. A linguagem e a morte.

Muitas são as leituras suscitadas por Nijinski. Deleuze e Guattari, em O Anti-Édipo, fazem dele o príncipe esquizo das metamorfoses, mero preanúncio do Anti-Cristo de Klossowski. O filósofo Jean-Christophe Goddard considera a sua dança a única prática crítica contra-filosófica, ou seja, ela é a filosofia sob o ponto de vista daquele a quem a filosofia lhe confisca todo ponto de vista. Em outras palavras, Nijinski, "violé par un Russe et exhibé comme une curiosité exotique sur la scène d’un théâtre zoologique parisien"[2], ele torna-se índio, negro, egípcio, ao longo dos Cahiers (NIJINSKI, 2012), o que revela "la difficulté, l’impossibilité (?), d’être son corps sous le regard d’un Blanc"[3]. E como negro, indiano, egípcio ou japonês só podem ser traços intensivos (mas nunca "sem-caráter") para um Branco, a dança de Nijinski é encarada como uma prática de formas extra-ocidentais, tal como os baixo relevos egípcios do Fauno ou a dança telúrica da Sagração. Goddard inclusive relembra o Pajé Yanomami Davi Kopenawa, quem

[...] dans La chute du ciel lie l’éventration minière de la terre et la destruction de l’arbre par les Blancs à leur impuissance à rêver et à transmettre les danses étrangères qu’enseignent à profusion les êtres de la Forêt. Danser Nijinski revient à puiser à cette source étrangère, à cette pratique indigène de la danse qui improvise son mouvement non pas pour pimenter de chaos l’abêtissement conventionnel auquel chacun retourne au sortir de la salle de spectacle, mais au contraire sauver l’humanité du chaos et de sa catastrophe en révélant les liens naturels qui l’unissent à la terre – qui unissent l’agilité du gros orteil à la vie de la terre. De quel culte la danse est-elle la profanation – et la libération ? N’est-ce pas précisément du culte du corps-spectacle de toute les présentations psychiatriques, du sacro-saint corps hystérique traversé par une onde salvifique de sensation excessive et spasmodique, une belle ligne gothique septentrionale de sensation? (GODDARD, mimeo)[4]

E talvez isto nos ajude a traçar uma linha de separação entre a vanguarda, que deriva dos estudos freudianos sobre a histeria, da estética do esgotamento, cujo ponto de partida seria a atenção dispensada por Lacan aos escritos de Joyce. O sentido como au-sentido. Rosine e Robert Lefort nos relembram também que

Nijinski écrivit ses Cahiers entre le 19 janvier et le 4 mars 1919, soit entre sa dernière représentation à Saint-Moritz et sa consultation avec Bleuler à Zurich. Il ne dansera ni n’écrira plus ensuite. Il passera en hôpital les trente ans qui lui restent à vivre. Le mariage avec Dieu : est-ce à dire que comme Schreber, il est la femme de Dieu, sur un versant paranoïaque ? Ce serait prêter à cet Autre, ce Dieu, une jouissance dont il se ferait l’objet. Or, il n’est pas l’objet de Dieu, il est Dieu : 'Je veux signer Nijinski, mais mon nom est Dieu. J’aime Nijinski, pas comme Narcisse, mais comme Dieu. Je suis Dieu.' [...] L’effet de chaîne signifiante brisée se retrouve sous la forme d’être un signifiant, un signifiant unaire qui l’éternisera : 'Je ne veux pas mourir... je suis un poème, je suis une rime' et il écrit des poèmes où après avoir enfilé des pronoms personnels, il termine par une succession de phonèmes. Est-ce babil enfantin qui fait jouissance et qui fait pour lui l’Autre, auquel il arrive régressivement, Autre du schizophrène, sans objet, qui n’est autre que lalangue ? 'Ma petite fille chante ah, ah, ah. Je ne comprends pas ce qu’elle veut dire, mais je le sens. Elle veut dire que tous les ah, ah, ah, ne sont pas horreur, mais joie.' (LEFORT, p. 30-113)[5]

"Je répugne à danser comme je le faisais auparavant, car il n'y a pas de danse qui ne dépende de la mort"[6] - escreve Nijinski em seus Cahiers. Porque a linguagem é morte e a fala não se ouve, está perdida. Sintomáticamente, no epílogo (dedicado aliás ao poeta Giorgio Caproni) a seu seminário sobre a linguagem e a morte, de 1979-1980 (contemporâneo, por sinal, ao filme de Ross), Giorgio Agamben observa que, quando caminhamos no bosque, surpreende-nos a variedade de vozes animais possíveis de serem ouvidas.

Silvos, piados, trilos, toques como de madeira ou metal trincado, chilros, ruflos, bisbilhos: cada animal tem o seu som, que brota imediatamente dele. Enfim, a dupla nota do cuco zomba de nosso silêncio e revela-nos, insustentável, o nosso ser sem voz, únicos, no coro infinito das vozes animais. Experimentamos então falar, pensar. A palavra pensamento tem, originalmente, em nossa língua [italiana], o significado de angústia, de ansioso ressentimento, ainda presente na expressão usual: 'stare in pensiero'. O verbo latino pendere, do qual a palavra deriva para as línguas românicas, significa “estar em suspenso”. Agostinho usa-o neste sentido para caracterizar o processo do nosso conhecimento: 'O desejo que está na busca procede de quem busca e está, de algum modo, em suspenso [pendet quodammodo] e não repousa no fim para o qual tende, senão quando aquilo que é buscado é encontrado e se une àquele que busca.' O que é que está em suspenso, o que é que pende no pensamento? Pensar, na linguagem, nós o podemos apenas porque a linguagem é e não é a nossa voz. Existe uma pendência, uma questão não resolvida na linguagem: se esta é ou não a nossa voz, como o zurro é a voz do asno e o rechino é a voz das cigarras. Por isso não podemos, falando, deixar de pensar, de manter em suspenso as palavras. O pensamento é a pendência da voz na linguagem. (AGAMBEN, 2006, p. 145)

Diante desse impasse, Nijinski pula.


NOTAS

[1] Professor titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É pesquisador 1A do CNPq.

[2] "estuprado por um Russo e exibido como uma curiosidade exótica no palco de um teatro zoológico parisiense" (Tradução de Gustavo Ramos)

[3] "a dificuldade, a impossibilidade de ser seu corpo sob o olhar de um Branco". (Tradução de Gustavo Ramos)

[4] "[...] em A Queda do céu liga a evisceração mineral da terra e a destruição da árvore pelos Brancos à sua impotência para sonhar e para transmitir as danças estrangeiras que ensinam abundantemente os seres da Floresta. Dançar Nijinski é voltar a extrair dessa fonte estrangeira, dessa prática indígena da dança que improvisa seu movimento, não para apimentar com caos a estupidez convencional à qual cada um retorna ao sair da sala de espetáculo, mas, ao contrário, para salvar a humanidade do caos e de sua catástrofe ao revelar as conexões naturais que a unem à terra - que unem a agilidade do dedão do pé à vida na terra. De qual culto a dança é profanação - e a libertação? Não é precisamente do culto do corpo-espetáculo de todas as apresentações psiquiátricas, do sacrossanto corpo histérico através de uma onda salvífica de sensação excessiva e espasmódica, uma bela linha gótica setentrional de sensação?" (Tradução de Gustavo Ramos/revisão de Louise Lhullier)

[5] "Nijinski escreveu seus Cahiers entre 19 de janeiro e 4 de março de 1919, entre sua última performance em Saint-Moritz e sua consulta com Bleuler em Zurich. Ele não dançaria nem escreveria mais depois disso. Ele vai passar no hospital os trinta anos que lhe restavam. O casamento com Deus: isso quer dizer que, como Schreber, ele é a mulher de Deus, em uma vertente paranoica? Isso seria emprestar a esse Outro, a esse Deus, um gozo do qual ele se faria objeto. No entanto, ele não é o objeto de Deus, ele é Deus: 'Eu quero assinar Nijinski, mas meu nome é Deus. Eu amo Nijinski, não como Narciso, mas como Deus. Eu sou Deus'. [...] O efeito da cadeia significante quebrada vai retornar sob a forma de ser um significante, um significante unário que o eternizará: 'Eu não quero morrer... eu sou um poema, eu sou uma rima' e ele escreve poemas nos quais, após enfileirar pronomes pessoais, termina com uma sucessão de fonemas. É esse balbucio infantil que produz gozo e que faz para ele o Outro, ao qual ele chega regressivamente, Outro do esquizofrênico, sem objeto, o qual não é outro senão lalíngua? ‘Minha garotinha canta ah, ah, ah. Eu não compreendo o que ela quer dizer, mas eu o sinto. Ela quer dizer que todos os ah, ah, ah, não são horror, mas alegria’.” (Tradução de Gustavo Ramos/Revisão de Louise Lhullier)

[6] "Eu detesto dançar como fazia antes, pois não há dança que não dependa da morte." (Tradução de Gustavo Ramos/Revisão de Louise Lhullier) 

REFERÊNCIAS

AGAMBEN, Giorgio. O fim do pensamento. In:_______. A linguagem e a morte: um seminário sobre o lugar da negatividade. Trad. Henrique Burigo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.

LEFORT, Rosine ; LEFORT, Robert.  Nijinski : génie et suppléance. L'Ane, n.61, p. 26-30, julho 1995.

GODDARD, Jean Christophe. Nijinski. Le fou d’amour et les mangeurs de viande. (mimeo)

NIJINSKI, Vaslav. Cahier. Version non expurgée traduite par C. Dumais-Lvowski et G. Pogojeva. Paris: ACTE SUD, Babel, 2012.

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