LÉOLO[1]

Laureci Nunes
AP, Membro da EBP e da AMP
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world in fragments XXX the final cut
world in fragments XXX  [the final cut] - reginaldo cardoso

Cinema e psicanálise têm uma irmandade histórica e caminhos que se entrecruzam. Num primeiro momento, as realizações cinematográficas tentaram representar a cena psicanalítica. Depois, o cinema passou a fazer uso do saber psicanalítico em suas produções, inicialmente demarcado pela via do significado e decifração do inconsciente conforme a tradição da descoberta de Freud até alcançar um olhar renovado nos anos setenta através de cineastas que liam Lacan (JOUCLA, 2011, p. 09-10).

Jacques Lacan, na forma como se serviu dessa arte, fez um caminho inverso: não se interessou por interpretar a obra de arte. Buscou lê-la, deixando-se atrair pelo caráter revelador (ESQUÉ, 2018) de um filme ao considerá-lo um terreno propício em que se desenvolvem e se esclarecem os conceitos da psicanálise, sobretudo o de gozo (JOUCLA, 2011, p. 10). Para ele, o artista está sempre à frente da psicanálise, conforme se manifesta no escrito em Homenagem à Marguerite Duras (LACAN, 2003, p. 200). Em ambos, tanto no cinema como na psicanálise, o interesse, o trabalho se dirige ao real. O tratamento analítico visa ao singular de cada sujeito e era o ponto de singularidade da invenção do artista que Lacan buscava captar nos inúmeros filmes aos quais se ateve em seus seminários.

Os sujeitos que apostam no laço social, diante do furo da estrutura, do fora de sentido do mundo, recorrem à montagem da fantasia para fazer-lhe frente. Ela inclui imagem, roteiro e tem o olhar como objeto, como no cinema. A fantasia é uma proteção, uma defesa em relação ao real, ou seja, gozamos protegidos, sem poder encarar diretamente essa dimensão porque ela geralmente produz angústia.

Porém, o curioso é que nos dispomos à experiência do cinema onde nos entregamos a encontros surpresivos, que, muitas vezes, não nos poupam do afeto de angústia. A ida à sala de cinema nos conduz a experiências em que nos autorizamos certa transgressão – aí, o pudor, a vergonha, o medo (GURGEL et alii, 2008, p. 163) são deixados de lado e nos deixamos ser invadidos por imagens antes impensáveis, cujo ponto de impacto, e sua força, não depende somente do proposto pelo diretor. Assistimos a filmes diferentes olhando a mesma tela, porque as imagens e o texto tocam em pontos diferentes da subjetividade, dependendo das coordenadas de gozo de cada espectador, assim como das suas suscetibilidades momentâneas. Certamente, cada um de nós lembra de filmes que marcaram nossas vidas ou, dito mais propriamente, que podem representar partes de nossa história, de forma ímpar, em suas passagens mais íntimas. Como analista, nos interessamos pelo fragmento de um filme trazido pelo discurso de um paciente da mesma forma como nos interessamos pelo conteúdo de seus sonhos ou por seu sintoma. Há algo ali que diz dele, um ponto de captura, através do qual um saber pode ser construído. É por isso que os filmes nos fazem falar e, diante de alguns filmes, é imprescindível discuti-los com outros, demarcar os pontos pregnantes de nossa atenção, subjetivar a partir da experiência da obra, para nos reacomodarmos um pouco.

É por isso que Léolo, produção de Jean-Claude Lazon, abre os trabalhos deste colóquio. Ele deu muito o que falar na equipe e se colocou para mim como um paradigma: o mais poético e o mais triste filme da temporada de coordenação desses trabalhos.

A princípio, a invenção do personagem Léolo me pareceu genial: criar uma ficção que lhe permitisse fazer frente à precariedade subjetiva da família, permitindo-lhe, então, um convívio, mas, gradativamente, acompanhamos o limite dessa ficção, desse sonho.

Em tese, não há muita diferença entre a solução criada pelo personagem e a de nós neuróticos, ao entrarmos na linguagem, ao entrarmos numa família. Construímos ficções sobre nossa origem, sobre a posição sexuada, a vida e a morte com a trama da fantasia. Ela faz um enquadre ao real, ao furo da linguagem, ao sem sentido do mundo, aprisionando imaginariamente um objeto, tecido pelos fios das identificações. Esse arranjo se sustenta com poucos elementos advindos diretamente do papai ou mamãe reais. Ele é construído a partir de restos, de traços de captura, uma bricolagem. E é a partir disso que uma ontologia se instala. A ilusão de ser e de ter um corpo como próprio se fixa em prol da obtenção de um lugar de amor no outro – uma atribuição que dá condição ao juízo de existência (LACAN, 1998, p. 564). Ao consentirmos entrar no laço social, nos discursos, cedemos um naco de carne, uma parte de gozo e ganhamos o sentimento de pertencimento, uma existência, ainda que insatisfatória.

 Léolo nega o pertencimento àquela família de loucos, inventa um pai, um país, uma história. Nem a identificação ao irmão como um duplo se sustentou por muito tempo, pois logo ele se deu conta de que Fernando, mesmo montado num monte de músculos, não deixou de ter medo. A solução à debilidade e à angústia não veio com a força bruta.

Seguindo o percurso de Léolo aprendemos que não basta que o sujeito se fixe ou se refira ao recurso de uma ficção, de um sonho ou de um sintoma para segurar-se na vida. Esses recursos são úteis desde que os testemos na prova com a realidade, acordados, no laço com os outros, com o Outro, aceitando o árduo convite a entrar no discurso, permitindo que a fala veicule e se havendo com o impossível de dizer.

Para aprender sobre o inconsciente que se apresenta num sonho é necessário estar acordado. Freud se perguntou sobre a responsabilidade do sonhador com o conteúdo sonhado, não hesitou em responder que “obviamente, temos de nos considerar responsáveis pelos impulsos maus dos próprios sonhos. Que mais se pode fazer com eles? A menos que o conteúdo do sonho (corretamente entendido) seja inspirado por espíritos estranhos, ele faz parte de seu próprio ser” (FREUD, 1976, p. 165).

Para Frederico Fellini (1995, p. 113),

a linguagem dos sonhos é a mesma de um filme e o filme é um sonho. Podemos dilatar o espaço, dar saltos no tempo, fazer aparecer e desaparecer as pessoas sem razão aparente. Assim [que] nos lembramos de um sonho pensamos nas perspectivas e nos personagens estranhos, mas sobretudo na luz indefinível, aquela que se associa a uma consciência livre. Ainda mais quando essa luz revela e esconde nossas mais profundas emoções: eu tento reproduzi-la no estúdio, na esperança de tornar meus filmes “sonháveis”.

Aproximar o filme a um sonho é muito diferente do que acreditar que a vida é o próprio sonho. Léolo observava, mas não falava. Escrevia, mas isso não o retirou de seu autismo de gozo porque seu escrito, ainda que fosse um recurso simbólico, não tinha endereçamento. O caçador de vermes o lia, mas não era uma mensagem a ele dirigida. Léolo não desejou ser um escritor que daria trabalho aos universitários por 300 anos, tal qual James Joyce.

Ele repetiu até o início de sua adolescência “porque eu sonho, eu não sou” e, nesse momento, quando teve que se haver com os impasses de sua posição sexuada, vemos sua entrada no abismo, no furo pelo qual, de início, passou seu pé e, em seguida, todo seu corpo.

Léolo não odiou seu pai porque não pode amá-lo (LACAN, 1985, p. 91-92), deu-lhe as costas. Inventou-se um nome às expensas do pai, não pode se servir dele, mas também não subverteu o legado que dragou quase todos de sua família. Teve medo de amar e não pode mais sustentar-se na trama de seu sonho solitário. Seu corpo caiu em catatonia, no “vale dos vitoriosos”: “Porque eu sonho, eu sonho / Porque eu não amo, porque eu tinha medo de amar / Eu não sonho mais”.

[1] Texto apresentado no Colóquio Psicanálise e Cinema realizado pela Escola Brasileira de Psicanálise em 31 de agosto e 01 de setembro de 2018, no Centro Integrado de Cultura, em Florianópolis, Santa Catarina


REFERÊNCIAS

ESQUÉ, Xavier. Entrevista a Xavier Esqué por Diana Paulozky. In: Psine. Revista Digital, núm. 4, mar. 2018. Disponível em: <http://revistapsine.com/psine-n4/esque-videoentrevista>. Acesso em: 20.ago.2018.

FELLINI, Frederico. Eu sou um grande mentiroso. Entrevista a Damien Pettigrew. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1995.

FREUD, Sigmund. Algumas notas adicionais sobre a interpretação de sonhos como um todo. In: ___. Obras completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1976, p. 159-173.

GURGEL, Iordan et alii. Cinema e violência: um pedaço de mim. In: FUENTES, Maria Josefina Sota; VERAS, Marcelo (Orgs.). Felicidade e sintoma – Ensaios para uma psicanálise no século XX. Salvador: Corrupto; EBP, 2008, p. 161-172.

JOUCLA, Jeanne. Préface. In: MATET, Jean-Daniel (Org.). Lacan regarde le cinema. Le cinéma regarde Lacan. Paris: École de la Cause Freudienne, 2011, p. 09-21.

LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 20 – mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985.

_______. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: ___. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998, p. 537-590.

_______. Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein. In: ___. Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 198-205. 

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