DO QUE FAZ FURO

Maria Teresa Wendhausen
AP, Membro da EBP/AMP
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light in august - reginaldo cardoso

Venho me perguntando faz algum tempo sobre o que, hoje, eu poderia circunscrever como sendo da ordem de pensar a clínica da psicose a partir da clínica do real em Lacan – pergunta essa que teve ressonância no estudo do que hoje denominamos a psicose ordinária. Por essa via, cheguei também a uma questão sobre o que levou Lacan em seu ensino a recorrer à topologia dos nós. Para efeito do que aqui pretendo desenvolver, vou partir dessa última questão fazendo um recorte do percurso em seu ensino que aí desemboca para verificar, ao final, o que ela pode elucidar em relação à primeira pergunta.

Numa aproximação inicial, eu diria que a clínica borromeana responde à questão do gozo feminino em jogo na experiência analítica. Aí Lacan faz uma invenção. No Seminário 23, O sinthoma, ele coloca “inventei o que se escreve como real” (LACAN, 2007, p. 125). Anne Lysy (2014, p. 282) nos diz que ele responde “pelo ‘forçamento’ de uma nova escritura, fora do sentido, o nó, que é sua resposta a Freud, ‘seu’ real”. Miller (2014) chega a se perguntar se este não seria o sintoma de Lacan, se essa não era a pedra angular que o fazia manter a coerência do seu ensino.

Diz respeito também, portanto a um mais além do Édipo.

Se, no seu chamado primeiro ensino, Lacan fez um retorno a Freud, tendo como referência o Édipo, a primazia do simbólico, do Outro, agora, justamente, trata-se de poder ir além dele. Ir além do pai.

Penso que é no ponto em que esse além se coloca efetivamente para ele que recorrerá ao nó borromeano. Pois, não mais existindo o Outro, o que mantém juntos RSI? Pierre Skriabine (2009, p.3) vai nos dizer que “o nó borromeano é um esforço para pensar a estrutura fora de uma referência ao Outro, a partir dos três registros, simbólico, imaginário e real, como três registros heterogêneos”. 

Incompletude do Outro

Seguindo esse percurso, vamos ver que esse além do pai Miller situa sua formalização no ensino de Lacan (2016, p. 322) no Seminário 6, O desejo e sua interpretação. Trata-se da incompletude do Outro, “não há Outro do Outro”. Falta no Outro um significante, S de A barrado. Temos esse desenvolvimento sob o fundo da definição que dá do significante Nome-do-Pai em De uma questão preliminar: “significante que, no Outro como lugar do significante, é o significante do Outro como lugar da lei” (LACAN, 1998, p. 590). Há Outro do Outro. “Aqui se trata de um giro decisivo de Lacan quanto à concepção do Nome-do-Pai correlativa de uma hiância no campo do Outro” (MILLER, 2013).

 Inconsistência do Outro

Como segundo marco nesse percurso de Lacan, temos a inconsistência do Outro que ele vai trabalhar no Seminário 16, De um Outro ao outro. Miller (2007, p. 12) coloca que esse seminário marca a transição na qual se abandona a crença na consistência do significante de modo a deslocá-la para o lado do objeto. Trata-se da “inconsistência do Outro e [da] consistência lógica do objeto a”. E segue:

na primeira parte de “A inconsistência do Outro”, encontramos uma retomada muito pessoal de Lacan, inspirada nas demonstrações clássicas da inconsistência, chegando à conclusão que em nenhuma parte do campo do Outro pode ser assegurada a consistência da verdade [...] Para dizê-lo em curto circuito: é em vão que se busca a verdade no significante, só o objeto a está apto a responder pela verdade (MILLER, 2007, p. 23).

Maurício Tarrab nos diz que é nesse seminário que Lacan começa a recorrer à lógica para situar o que ocorre na cura começando a deixar para trás a estrutura, a fim de pôr em primeiro plano o conceito de discurso. Por que o discurso, ele se pergunta, e nos coloca que é no seminário seguinte, O avesso da Psicanálise, que ele construirá os quatro discursos. Segue Tarrab (2008, p. 112):

A lógica permite reduzir o sentido dos termos implicados em um discurso, reduzir estes termos, estas palavras a letras [...] Lacan diz que se serve da lógica, porque esta consiste em uma maneira de esvaziar os ditos de seu sentido e por aí ter uma ideia do real, tocar algo do real.

Contudo, Tarrab nos esclarece que, no Seminário 21, Os não tolos erram – que faz homofonia com Os Nomes-do-Pai –, Lacan vai dizer que a lógica é a ciência do real. Nos Seminários 21, 22, 23, vai distinguir o real da ciência do real da psicanálise, que é um furo no saber incluído no real. Para a ciência há saber no real.

 Inexistência do Outro

Voltando, ainda, um pouco no percurso de Lacan, ele faz pela primeira vez referência em seu ensino ao nó borromeano no Seminário 19, ...ou pior, no tópico “O Outro: da fala à sexualidade”, no capítulo VI, “Peço-te que me recuses o que te ofereço” (LACAN, 2012, p.78-90) e retorna a ele no Seminário 20, Mais ainda, no capítulo X, “Rodinhas de barbante” (LACAN, 1985, p.160-186) – seminário esse que Miller toma como marco do seu último ensino. Em El Outro que no existe y sus comités de ética, Miller (2010, p. 10) nos indica que, a partir do Seminário 20, Lacan demarca a inexistência do Outro e isto inaugura a época lacaniana da psicanálise.

No Seminário 19, capítulo V, Lacan vai falar que aquilo que isolou dos quatro discursos resulta do que veio por último, o discurso analítico. E dele, desse discurso, diz que é a topologia fundamental de que decorre toda função da fala e se pergunta sobre qual é a função da fala. Coloca que o discurso do analista é a conta certa para fazer surgir esta questão.

Vai, então, trazer no capítulo VI, aquele em que trabalhou com a carta de amuro, “Peço-te que me recuses o que te ofereço”: “espero que não haja necessidade de acrescentar nada para isso ser compreendido [...] para os que talvez nunca tenham compreendido o que é a carta de amuro [...] porque não é isso”. (LACAN, 2012, p. 79). Faz novamente uma série de desenvolvimentos e diz que o ponto que nos está conduzindo é este: “trata-se de saber não como surge o sentido, mas como é de um nó de sentido que surge [...] o objeto a”. (LACAN, 2012, p. 85).

Ele mostra como a retirada de um dos verbos faz os outros dois perderem o sentido, alertando que não é através do não é isso referido a cada um individualmente que se trata, mas de “nos darmos conta de que é ao desatar cada um desses verbos de seu nó com os outros dois que podemos descobrir o que vem a ser este efeito de sentido como o que chamo de objeto a”. (LACAN, 2012, p. 88).

Enfim, o que está em jogo aí, a meu ver, é que é de um nó de sentido que surge o objeto a, ou seja, aquilo que não se pode falar “aquilo que supõe de vazio um pedido” (LACAN, 1985, p. 171).

É aí que Lacan (2012, p. 88-89) introduz o que recebeu de um ouvinte, o brasão das armas da família Borromeu:

Se copiarem com bastante cuidado vão perceber que [...], retirando-se este aqui, o terceiro, os outros dois se separam. Ele passa por cima do da esquerda e também passa por cima do daqui. É somente por causa do terceiro que eles se mantêm juntos [...].

Portanto, basta cortar um para que os outros dois se soltem, mesmo que deem a impressão de estar ligados [...].

Então, será que não temos aí, sob uma forma reduzida [...], algo que nos permite ilustrar a verdade fundamental de que todo discurso só adquire sentido a partir de outro discurso? [...].

No Seminário 20, Mais, ainda, no capítulo X, “Rodinhas de barbante”, voltando aos nós, Lacan (1985, p. 172-173) faz a seguinte pergunta: “será que isto esclarece vocês sobre o interessante que há em se partir da rodinha de barbante? A dita rodinha é certamente a mais eminente representação do Um, no sentido em que ela encerra apenas um furo”. E nos traz como exemplo que mostra

para que pode servir essa fileira de nós dobrados que se tornam independentes com apenas cortarmos um só [...]. Lembrem-se do que povoa alucinatoriamente a solidão de Schreber [...] agora eu vou me... [...] vocês devem quanto a vocês... Estas frases interrompidas deixam em suspenso não sei que substância. Percebe-se aí a exigência de uma frase, qualquer que ela seja, que seja tal que um de seus elos, por faltar, libera todos os outros, ou seja, lhes retira o Um.
[...] o nó borromeano é a melhor metáfora do seguinte: que nós só procedemos do Um.
[...] Há Um [...].
O real [...] é o mistério do corpo falante, é o mistério do inconsciente. (LACAN, 1985, p. 173-174, 178).

Patrício Alvarez (2013, p.1) nos esclarece do que se trata nessa afirmação de Lacan: “é um corpo falado por certas contingências de um dizer, que produziram acontecimento, e é um corpo que com seu dizer, faz acontecimento”.

Retorno a partir daqui à pergunta que coloquei no início deste trabalho, que é aquela que, faz algum tempo, norteia minha pesquisa em relação à clínica da psicose, de como pensá-la a partir da clínica do real em Lacan. Nos termos que aqui estou desenvolvendo, como pensá-la no ponto justamente em que não há furo, em que o furo não está presente, que é o que Lacan nos mostra que acontece com Schreber? “Um efeito de dispersão, de desordem na língua que deixa o sentido em suspenso até novo aviso”, nos diz Silvia Salman (2018, p.1). E nos esclarece que pode se apresentar das mais diversas formas.

O que pode a transferência nestes casos? Como operar no tratamento para que o furo aí se apresente?

Dois casos clínicos, de nossa literatura, a meu ver, ilustram muito bem do que se trata – e talvez, não por acaso, ambos recolhidos do trabalho desenvolvido no seio da Associação Mundial de Psicanálise (AMP), num movimento de investigação da clínica da psicose que culminou com a criação, por Miller, do termo psicose ordinária: “Um caso nem tão raro”, de Pierre Deffieux (1997, p.13-18), e “Cura de um mutismo – da perplexidade à surpresa”, de Gabriel Lombardi (1997, p.135-144).

A respeito do primeiro deles, o Núcleo de Topologia do Rio de Janeiro, numa atividade conjunta com o Núcleo de Pesquisa sobre Psicose de Santa Catarina, trouxe uma leitura borromeana que nos mostra como a partir da desconsistência do Outro, na transferência, um furo pode se colocar ali onde ele não comparecia, “apesar das tentativas incessantes do sujeito de procurar constitui-lo através do exibicionismo, da fotografia e do artesanato de madeira. Assim, no lugar de um deslizamento incessante algo se fixou a partir da transferência” (ATA, 2016, p.13).

No caso de Lombardi (1997, p.135), como o próprio título nos sugere – “da perplexidade à surpresa” –, um “se deixar concernir” enquanto sujeito do lado do analista “a cada surpresa do seu lado, afastava-se do sintoma e de seu efeito incurável de perplexidade, do lado do paciente. Uma tal surpresa suplementar, misteriosamente trabalhava no sujeito uma posição mais sustentável, uma existência mais viável”.

Não por acaso, talvez, estes dois pacientes puderam prescindir da presença do analista, melhor dizendo, nos termos de Deffieux (1997, p. 127), “este é um daqueles casos que se acompanha para sempre, porém sem ficar com ele para o resto da vida”. Essa questão, em particular, tem me interessado nos casos que atendo.

Para concluir, eu diria que se trata aí de servir-se do pai como furo, certamente naquilo que, no tratamento, a manobra da transferência o possibilita – ponto esse muito bem esclarecido nos dois casos citados, os quais podem nos servir de referência, a meu ver, para pensarmos a transferência na psicose a partir dessa perspectiva.


REFERÊNCIAS

Ata do encontro do Núcleo de Topologia do RJ com o Núcleo de Psicose de SC. 2016. (inédito)

ALVAREZ, Patrício. Falar com qual corpo?. [s.l]: [s.n], 2013. Disponível em: <www.enapol.com/pt/template.php/file/textos/template.php?file=Textos/Hablar-con-cual-cuerpo_Patricio-Alvarez.html>. Acesso em: 28 jun. 2018.

DEFFIEUX, Jean Pierre. Um caso nem tão raro. In: MILER, Jacques-Alain (Org.). Os casos raros, inclassificáveis, da clínica psicanalítica: a conversação de Arcachon. Rio de Janeiro: Agalma, 1997, p. 13-18.

LACAN, Jacques. De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose. In: _______. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

_______. O Seminário, livro 6: O desejo e sua interpretação. Rio de Janeiro: Zahar, 2016.

_______. O Seminário, livro 19: ... ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012

_______. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1985.

­­_______. O Seminário, livro 23: o sinthoma. Rio de janeiro: Zahar, 2007.

_______. Peço-te que me recuses o que te ofereço. In:_______. O Seminário, livro 19:  ... ou pior. Rio de Janeiro: Zahar, 2012, p. 78-90.

_______. Rodinhas de barbante. In:_______. O Seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 160-186.

LOMBARDI, Gabriel. Cura de um mutismo – da perplexidade à surpresa. In: IRMA – Le conciliabule d’Angers – Effets de surprise dans les psychoses. Paris: Agalma, Diffusion, Le Seuil, 1997, p. 135-144.

LYSY, Anne. Passe. In: MACHADO, Ondina; RIBEIRO, Vera Lúcia Avellar (Orgs.). Scilicet: um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014, p. 280-282.

MILLER, Jacques-Alain. El Outro que no existe y sus comités de ética. Buenos Aires: Paios, 2010.

_______. O Outro sem o Outro. A Diretoria na Rede; boletim da Escola Brasileira de Psicanálise, nov. 2013. Disponível em https://www.ebp.org.br/dr/orientacao/orientacao005.asp. Último acesso em 07/09/2018.

_______. O real para o século XXI. In: MACHADO, Ondina; RIBEIRO, Vera Lúcia Avellar (Gros.). Scilicet: um real para o século XXI. Belo Horizonte: Scriptum, 2014, p. 21-32.

_______. Uma leitura do Seminário, livro 16: De um Outro ao outro. Opção Lacaniana, São Paulo, n.48, p. 9-42, mar. 2007.

SALMAN, Silvia. O psicanalista e o Um. [s.l.]: [s.n.], 2018. Disponível em: <https://congresoamp2018.com/pt-pt/psicanalista-e-um/>. Acesso em: 28 jun. 2018.

SKRIABINE, Pierre. A psicose ordinária do ponto de vista borromeano. Latusa digital. Rio de Janeiro, v. 6, n. 38, set. 2009. Disponível em: < http://www.latusa.com.br/pdf_latusa_digital_38_a2.pdf>. Acesso em: 20 ago. 2018.

TARRAB, Maurício. La fuga del sentido y la prática analítica. Buenos Aires: Grama, 2008.

Resumo: Este trabalho pretende desenvolver o modo como Lacan, especialmente em seu último ensino, elabora as noções de furo e de nó borromeano. Trata-se, então, da aposta em uma linha de leitura possível ao tratamento da psicose a partir dessas noções.

Palavras-chave: Furo; Nó borromeano; Psicose.                                                   

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